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Por Maria Teresa Salgado

Quem me dera ser onda - O riso na literatura angolana de língua portuguesa

Alguns autores conseguem tecer linhas cômicas diante da condição trágica do cotidiano, o que acabou se tornando uma característica comum nas produções literárias de países periféricos. O riso passa a ser o elemento crítico da ordem estabelecida, apontando suas falhas e subvertendo-a, demonstrando o grotesco da situação vigente. No caso específico das literaturas africanas de língua portuguesa, depreendemos o uso da carnavalização de Bakthin.

Na novela Quem me dera ser onda, do angolano Manuel Rui, o caráter cômico predomina durante toda a narrativa. O grotesco apresenta-se no inusitado enredo do livro: moradores vindos do interior decidem criar um porco em um apartamento no sétimo andar de um prédio. Com isto, várias “makas” acontecem entre o fiscal do prédio, responsável por manter a ordem, Diogo e seus filhos Zeca e Ruca, que tentam ocultar a presença do suíno.

A novela passa-se no período pós-independência angolano, e inferimos a presença do ambiente de euforia que havia com a libertação recentemente conquistada do colonialismo português. Notamos também a utilização de um vocabulário de cunho marxista, pois a revolução feita pelo MPLA, partido que assumiu o poder, tinha orientação comunista. Contudo, é exatamente na aplicação dos valores da ideologia marxista na sociedade angolana que as contradições surgem em razão da revolução não cumprir com plenitude suas promessas. E é no cotidiano do prédio que a narrativa de Manuel Rui pretende metonimizar a situação do país naquele momento.

Apreendemos o frouxo cumprimento das leis pelos revolucionários logo no início da novela. Diogo, fiel aos ideais da revolução, subverte a lei do prédio ao levar um porco para o apartamento. Este personagem é responsável por diversas passagens cômicas do texto, é ele que questiona os privilégios de alguns companheiros, é quem busca soluções para manter o porco quieto. Para surpresa de todos, o porco imediatamente fica calado, o que leva Diogo a comemorar de acordo com suas convicções: “Conquistas da revolução! Estás politizado! Isto é o que a comissão de moradores devia ver” (RUI, Manuel. Quem me dera ser onda. Rio de Janeiro, Gryphus, 2000, p. 19). Com fina ironia, o narrador comenta que “carnaval da vitória” (nome do porco) passa a ser o principal ouvinte da rádio do país.

Apreendemos certa inocência em Diogo e seu furor revolucionário, pois seus comentários oscilam entre pesadas críticas à corrupção dos governantes e a euforia com pequenas conquistas na vida social, como mostra a passagem em que a sua tão sonhada carne foi retirada dos restos alimentícios de um hotel de luxo pelos seus filhos, com o intuito de acalmá-lo e, assim, fazer com que ele esquecesse de comer carne de porco.

Entretanto, o objetivo de Diogo é alimentar o porco até o carnaval, data que promete fazer um grande churrasco e saciar a vontade de comer carne, sumida dos postos de abastecimento para a população, porém farta na dieta dos políticos do alto escalão do partido conforme denuncia a novela. Mas sua idéia vai de encontro ao pensamento dos filhos, que rapidamente iniciam um fraterno relacionamento com o animal: “Os dois miúdos tratavam o porco como membro da família. Limpavam o cocó dele, davam-lhe banho e, todos os dias, passavam na traseira do hotel a recolher dos contentores pitéus variados com que o bicho se giboiava” (RUI, 2000, p. 20). A amizade gerará diversas situações hilárias protagonizadas pelas crianças na tentativa de esconder o porco.

Com o carinho desenvolvido pelos meninos, “carnaval da vitória” passa a alimentar-se com restos de um hotel luxuoso, “comia de um hotel de primeira; nos restos vinham panados, saladas mistas, camarões, maioneses, lagosta, bolo inglês, outras coisas sempre a variar” (RUI, 2000, p. 17). Diferente de seu passado, em que a ração se resumia em comer espinhas de peixe nas areias da praia de Corimba, alimentando críticas de Diogo que começa a considerar o comportamento do animal como pequeno-burguês: “Estás-te a aburguesar-se. Quem te viu e quem te vê. É a luta de classes!” (RUI, 2000, p. 17). O porco transforma-se, segundo Maria Teresa Salgado,

“o animal acaba metamorfoseando-se, respondendo ao papel dinâmico e ambivalente da cultura popular, que remete às imagens do corpo grotesco em transformação”

Ou seja, o porco alimenta-se melhor e com mais variedade que os moradores da casa, levando Diogo a denunciar o “peixefritismo”, que é a ausência de carne nas refeições diárias em virtude do racionamento imposto pelo governo.

As crianças têm importante papel durante a trama, pois são elas que possuem o pensamento rápido e astuto para conseguir garantir a permanência do animal, escondendo-o, através de mentiras, dos fiscais responsáveis pelo cumprimento das regras do prédio. Protegem “carnaval da vitória” de embaraçosas situações, como a vez que decidiram levar o animal à escola e este consegue fugir enquanto estava entre os colegas de turma. Além do porco se tornar um ídolo para os meninos, fazendo com que ele vire personagem de um concurso de redação e desenho da escola, sendo admirado até pela professora.

São as crianças que infernizam as vidas dos fiscais do prédio, mostrando a fragilidade e o despreparo dos que seriam os responsáveis por manter a chama revolucionária acesa.

Todavia, mesmo com todas as peripécias para manter “carnaval da vitória” vivo, o porco é morto por Diogo e o churrasco é realizado durante o carnaval numa grande confraternização que reuniu, inclusive, o fiscal Nazário: “– Ataque camarada Nazário. É lombinho e não é marítimo. – Espere um momento. Vou buscar a minha mulher, trago uma grade e na volta chamo o Faustino com a aparelhagem. Veja se precisam de louças e talheres.” (RUI, 2000, p. 60)

A metáfora é clara, tal como o porco “carnaval da vitória”, os ideais da revolução não sobrevivem aos descaminhos que se seguiram na construção da nação angolana. O porco saiu da miséria em que vivia na praia, teve seus dias de glória e bom tratamento com as refeições caprichosas do hotel que os meninos traziam. Contudo, seu momento de bem-estar e euforia foi curto como a paz em Angola que, após a guerra colonial e a conquista da independência, conviveu com poucos anos de estabilidade e depois sofreu com a guerra civil entre o MPLA e a UNITA, esta patrocinada pela África do Sul.

Entretanto, a distopia contida na mensagem da novela, deixa-nos ao seu final uma ponta de esperança vinda das crianças ao refletirem se não seria melhor terem deixado “carnaval da vitória” fugir. Afinal, o porco em seu lugar era “livre.

Portanto, é pelo uso da carnavalização e do grotesco perpetrada na novela que o autor Manuel Rui narra, recorrendo ao riso, a desilusão revolucionária angolana, porém sem deixar a chama da esperança desaparecer:

E Ruca, cheio daquela fúria linda que as vagas da Chicala pintam sempre na calma do mar, repetiu a frase de Beto: – Quem me dera ser onda!” (RUI, 2000, p. 60) Manuel Rui: Quem me dera ser onda

 

Livremente tirado de:
SALGADO, Maria Teresa. O riso na literatura angolana de língua portuguesa. In: LEÃO, Ângela Vaz. Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa. Belo Horizonte, Pucminas, 2003.

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