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As personagens

Talvez o universo todo tivesse desaparecido e só existisse o nada do outro lado do nevoeiro. Parecia-lhe conduzir há muitas horas naquele ventre húmido e esbatido, e doíam-lhe os olhos de tentar ver um pouco de estrada frente do automóvel. Talvez o mais horrível fosse o silêncio branco daquele labirinto de estradas, entre as montanhas e os abismos, de tempos a tempos um túnel, uma cascata jorrando das rochas, a água agredindo ferozmente o pára-brisas durante segundos. E sempre o nevoeiro, denso, quase impenetrável.

Quase não viu o letreiro da pousada, quase seguiu sempre, definitivamente perdida no labirinto de nevoeiro. Viu-o mesmo no último instante e então adivinhou o edifício, cinzento e misterioso. Ao abrir a porta do carro o frio enregelou-a, foi como se mãos húmidas lhe cobrissem de repente o rosto. Subiu os degraus a correr e encontrou-se num alpendre pequeno, diante de uma pesada porta de madeira. Mas a porta abriu-se quase de seguida e uma voz um pouco rouca, um pouco quente, disse-lhe para entrar. A porta fechada, o nevoeiro e o frio bem presos lá fora, o homem ajudou-a a despir o casaco.

Então, olharam-se em silêncio. Ela era alta e morena, o cabelo longo, olhos verdes, enormes, um corpo de forma marcadas, mal escondidas pelos jeans e a camisola larga. Ele poderia ser a sua versão masculina. Um pouco mais alto do que ela, o rosto bem parecido, os olhos intensamente verdes. Jeans muito velhos, a camisa branca aberta sobre o peito moreno. Sorriu e rompeu o silêncio:

- Suponho que deseja um quarto.
- Sim. Por uma noite. Têm quartos vagos.
Ele riu.
- Claro.

Continuava a olhá-la fixamente, como se esperasse algo. Ela perguntou, um pouco impaciente:
- Quer que assine o livro de registo?
- No, não temos nenhum. Chamo-me Miguel.
- Diana.

O sorriso dele, notou, era irónico, mas um pouco inquieto. Ela tinha vontade de fazer mil perguntas, saber porque estava ali, o que queriam dela. Mas ele talvez fosse um simples funcionário.
- Vou mostrar-lhe o seu quarto disse o desconhecido com uma vénia trocista. Pegou na pequena mala e indicou-lhe o caminho. Subiram as escadas sem dizer palavra. "Talvez", pensou Diana, "tudo isto tenha uma explicação muito simples. Mas não sei se é isso que quero." Nos últimos dias imaginara tantas histórias fantásticas... Porque, tanto como o dinheiro, atraíra-a a possível aventura, o possível mistério.

No cimo da escada estava um enorme espelho onde o homem e a mulher morenos, de olhos igualmente verdes e enormes, se olharam por instantes. Um corredor longo desenhava-se direita, com portas de ambos os lados, terminando numa grande janela envidraçada, que parecia uma simples tela branca. Ele abriu a porta do penltimo quarto.

O quarto não era grande mas era belíssimo, os poucos móveis de mogno, a colcha branca, um jarro com inúmeras flores minúsculas, brancas. Ela tentou lembrar-se do nome daquelas flores, mas não conseguiu. Aproximou-se da janela e afastou os cortinados, também brancos. Não se via absolutamente nada lá fora, o nevoeiro palpitava do outro lado da vidraça.
- É muito bonito disse baixinho.
O homem riu.
- Não havia problemas se não gostasse. Todos os quartos estão vagos.

Quando ele saiu, Diana sentou-se na cama, pensativa. Sabia agora que não havia mais hóspedes. Se também não havia empregados, como tudo indicava, estavam completamente sós naquela pousada. Sentiu medo de repente, um medo estranho, irreal, como se nunca mais pudesse voltar ao mundo que conhecia, como se estivesse longe, demasiado longe.

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