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Jorge Amado: A morte de Vadinho
(Dona Flor e seus dois maridos)

Vadinho, o primeiro marido de Dona Flor, morreu num domingo de Carnaval, pela manhã, quando, fantasiado de baiana, sambava num bloco, na maior animação, no Largo Dois de Julho, não longe de sua casa. Não pertencia ao bloco, acabara de nele misturar-se, em companhia de mais quatro amigos, todos com traje de baiana, e vinham de um bar no Cabeça, onde o uísque correra farto à custa de um certo Moyses Alves, fazendeiro de cacau, rico e perdulário.

O bloco conduzia uma pequena e afinada orquestra de violões e flautas; ao cavaquinho, Carlinhos Mascarenas, magricela celebrado nos castelos, ah! um cavaquinho divino. Vestiam-se os rapazes de ciganos e as moças de camponesas húngaras ou romenas; jamais, porém, húngara ou romena ou mesmo búlgara ou eslovaca rebolou como rebolavam elas na flor da idade e da faceirice.

Vadinho, o mais animados de todos, ao ver o bloco despontar na esquina e ao ouvir o ponteado do esquelético Mascarenhas no cavaquinho sublime, adiantou-se rápido, postou-se ante a romena carregada na cor, uma grandona, monumental como uma igreja- e era a Igreja de São Francisco, pois se cobria com um desparrame de lantejoula doirada-, anunciou:
- Lá eu vou, minha russa do Tororó...

O cigano Mascarenhas, também ele gastando vidrilhos e miçangas, festivas argolas penduradas nas orelhas, apurou no cavaquinho, as flautas e os violões gemeram, Vadinho caiu no samba com aquele exemplar entusiasmo, característico de tudo quanto fazia, excepto trabalhar. Rodopiava em meio ao bloco, sapateava em frente à mulata, avançava para ela em floreios e umbigadas, quando, de súbito, soltou uma espécie de ronco surdo, vacilou nas pernas, adernou de um lado, rolou no chão, botando uma baba amarela pela boca, onde o esgar da morte não conseguia apagar de todo o satisfeito sorriso de folião definitivo que ele fora.

Os amigos ainda pensaram tratar-se de cachaça, não os uísques do fazendeiro: não seriam aquelas quatro ou cinco dozes capazes de possuir bebedor de classe de Vadinho; porém toda a cachaça acumulada desde a véspera ao meio-dia, quando oficialmente inauguraram o Carnaval no Bar Triunfo, na praça Municipal, subindo toda ela de uma vez e derrubando-o adormecido. Mas a mulata grandona não se deixou enganar: enfermeira de profissão, estava acostumada com a morte, frequentava-a diariamente no hospital. Não, porém, tão íntima a ponto de dar-lhe umbigadas, de pinicar-lhe o olho, de sambar com ela. Curvou-se sobre Vadinho, colocou-lhe a mão no pescoço, estremeceu, sentindo um frio no ventre e na espinha:
- 'tá morto, meu Deus!

Outro tocaram também o corpo do moço, tomaram-lhe do pulso, suspenderam-lhe a cabeça de melenas loiras, buscaram-lhe o palpitar do coração. Nada obtiveram, era sem jeito, Vadinho desertara para sempre do Carnaval da Bahia.

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